27 de out. de 2009

ILAÇÕES


"Os tratores finalmente se colocaram a postos, o sol da manhã a reverberar nos elos da corrente e a fumaça negra dos escapamentos a subir para o céu azul, quase sem nuvens, daquele dia de verão.
Então, os tratores deram a parida e arrancaram. Mas do meio do silêncio da mata, suplantando o barulho das máquinas, centenas de pessoas se levantaram do chão, saíram de seus esconderijos e começaram a cantar.
Os tratoristas, assustados, puxaram os freios de mão.
O confronto era iminente, e as forças, desiguais.
Todos os olhos se voltavam para o chefe da equipe, mas o homem ficou parado, o rosto franzido pela tensão, sem poder acreditar que os seringueiros tinham conseguido trazer tanta gente. Ali deviam estar umas 200 pessoas. E dispostas a ir até o fim, como era costume dos acreanos.
Sem demonstrar o que sentia, fez sinal para que os tratores recuassem. Os dois monstros roncaram e foram se afastando, puxando a enorme corrente que ia levando tudo em seu caminho.
Felizes, os seringueiros aplaudiram."

Trecho de O Empate contra Chico Mendes, de Márcio Souza (página 134)

10 de out. de 2009

GRÂNDOLA VILA MORENA

Grândola, vila morena foi composta como homenagem à "Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense", onde no dia 17 de Maio de 1964, José Afonso fez uma actuação. (...) José Afonso fica também impressionado com a colectividade: um "local obscuro, quase sem estruturas nenhumas, com uma biblioteca com claros objectivos revolucionários, uma disciplina generalizada e aceite entre todos os membros, o que revelava já uma grande consciência e maturidade políticas".

Esta canção tornar-se-á famosa ao ser escolhida como senha para a revolução do 25 de Abril. Houve duas senhas. A primeira, às 23h, foi a música "E depois do adeus", de Paulo de Carvalho. Grândola, que foi a segunda, passou no programa "Limite" da Rádio Renascença às 0.20h do dia 25. Foi o sinal para o arranque das tropas mais afastadas de Lisboa e a confirmação de que a revolução ganhava terreno.

"Vivi o 25 de Abril numa espécie de deslumbramento. Fui para o Carmo, andei por aí... Estava de tal modo entusiasmado com o fenómeno político que nem me apercebi bem, ou não dei importância a isso de Grândola. Só mais tarde, com o 28 de Setembro, o 11 de Março, quando recomeçaram os ataques fascistas e a Grândola era cantada nos momentos de maior perigo ou entusiasmo, me apercebi bem de tudo o que ela significava - e, naturalmente, tive uma certa satisfação".










5 de out. de 2009

A ROTA DOS LEVANTADOS PELA FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO


«O que mais há na terra é paisagem», diz José Saramago a abrir Levantado do Chão.

Paisagem, gentes e os caminhos que as pessoas, sejam reais sejam literárias, construíram para tornar mais humanas as suas vidas.

Para mostrar estes itinerários, a Fundação inicia uma série de roteiros, que se poderão seguir quer de maneira virtual quer no terreno. Repetir os passos das personagens de Levantado do Chão é outra forma de percorrer Portugal. Este é o primeiro trabalho que apresentamos: uma viagem pelo Alentejo e por outros lugares de Portugal onde também homens e mulheres anónimos, com as suas vidas, os seus trabalhos e as suas rebeldias introduziram conceitos de emancipação e liberdade.






Roteiro elaborado a partir de Levantado do Chão nos territórios em volta de monte maior além-Tejo: Lavre, Montemor-o-Novo, Vendas Novas, triângulo de um Alentejo levantado do chão onde se desenrola o essencial deste mural inigualável sobre um quase século de vida no(s) concelho(s), na região, no país, no largo mundo, nossa aldeia global.
De resto, fora do Alentejo há um outro triângulo na cidade grande, Lisboa, crucial também ele, o que une o Aljube, Caxias e a Pide (Rua António Maria Cardoso).
Visitando estes seis vértices entranhamo-nos no núcleo profundo destas páginas sobre homens levantados do chão.

Sintam, ouçam e visionem o rumor destas palavras e desta paisagem.
Filipe Chinita

Texto extraído do
site da Fundação José Saramago

EXPOSIÇÃO JOSÉ SARAMAGO


Exposição «José Saramago. Levantado do Chão» from Fundação Jose Saramago on Vimeo.

29 de set. de 2009

MULHERES, DE COSTUME CALADAS








Escrevo como simples espectadora. Não sei fazer a crítica da arte. Com ela me relaciono apenas através da emoção. E Levantado do Chão, fruto do trabalho dos alunos e profissionais da Usina de Arte João Donato, sem dúvida alguma é a demonstração do teatro que comove, que atinge o público de diversas maneiras, provocando lágrimas e risos, despertando tanto indignação quanto esperança. A história de Saramago, lindamente interpretada e cantada pelos dedicados “operários” da Usina, me fez pensar em muita gente que anda por aí a lutar por sua sobrevivência e também por um mundo mais justo, mais fraterno, onde todos possam trabalhar apenas o necessário e a ninguém falte o pão. As Saras, os Domingos, os Manuéis, os Sigismundos, as Gracindas vivem entre nós. E as Faustinas...

Uma delas eu conheci. Essa vivia no Brasil, não em Portugal. Trabalhava no campo e criava cinco filhos. Era casada com um comunista sonhador e não compartilhava com ele todas aquelas idéias “perigosas”. Tinha certo medo do que podia acontecer à família, mas ainda assim recebia em casa os amigos “sem nome” de seu marido. É, “de homens muito se tem falado”. As mulheres nem sempre estiveram nas reuniões clandestinas, nem sempre subiram aos palanques, nem sempre estiveram na linha de frente das batalhas. Mas isso não quer dizer que elas não estiveram presentes na luta, mesmo que “de costume caladas”. Quando os homens foram à guerra, quando foram presos, quando “foram desaparecidos”, as mulheres fizeram com que a vida seguisse seu rumo. João Mau-Tempo ainda tinha uma casa para onde voltar. A minha Faustina também viu seu João ser levado para a prisão sem maiores explicações. Era abril de 1964. Faustina não sabia sequer onde ficava a prisão. O medo, a angústia, deixaram-na “amalucada”. O seu João retornou e ela voltou a cuidar dele e da família. Outros nunca mais foram vistos, mas suas Faustinas e Gracindas não os esquecem.

É fato que muitas mulheres foram protagonistas em diferentes histórias. O nome de Rosa Luxemburgo pode ser evocado para representá-las. Talvez seja a esse grupo que venha juntar-se Maria Adelaide, a herdeira dos olhos de João Mau-Tempo. Mas para a história das lutas contra a opressão não podem contar apenas as heroínas. As mulheres anônimas, as que sofrem todo tipo de violência (a do latifúndio e a do marido) como Sara Mau-Tempo, que renovam a vida mesmo quando cercadas pela morte, que dão à luz aos novos seres que carregam a sina da exploração e neles alimentam a esperança de um mundo melhor, estas também participam da construção da história – mal denominada – “dos homens”. Em Levantado do Chão, é disso que nos lembram as mulheres da Usina. Mulheres caladas, amalucadas, mas também fortes e batalhadoras. A Faustina de Saramago e também a minha.


Laura Maria Loss Schwarz

AS QUARENTA FLORES DA LIBERDADE






Farto das mesmices televisivas que assaltam diuturnamente nossos lares e nossos cérebros; da invasão impiedosa do império midiático, com suas meias verdades que banalizam a animália humana e suas bestiais manifestações; que subjuga, discrimina, explora e assassina a sua própria espécie. Cansado de ver tanta iniqüidade em nome do deus-lucro a cooptar e corromper os insipientes desejos de mudança.

Vencido, porém aos contundentes “convites” e “argumentos” dos lá de casa, eis-me na platéia, em pleno teatro da Usina de Arte.

De mãos vazias, impaciente. Enquanto aguardo vou divagando.... Quantas obras primas foram apropriadas, deturpadas, diminuídas, diluídas e disfarçadas, para que pudessem entrar no universo “bem organizado” do imaginário burguês? Em quantos textos revolucionários foram acrescentados pontos, vírgulas, reticências... Até o seu mais completo esvaziamento.

Eis-me aqui, e diante de mim SARAMAGO, com seus sonhos, medos e flores - Nossos sonhos, medos e flores que brotam das mãos repletas de calos, a não mais poder, dos camponeses de além mar. São as mesmas mãos miseráveis da África negra, as mesmas mãos duríssimas e calosas da Latino América. E as minhas mãos índias vazias só com calos.

Vi erguerem-se da longa noite dos desprezos, levantarem-se do chão, restos de olhares sobreviventes, vestígios de almas maltratadas. E pouco a pouco, de cada gesto, de cada lágrima, descortinaram-se do próprio pó do chão o clamor da pólvora da indignação dizendo-me, vais... Anda... Luta! Continua... Sempre e sempre...

A cada nascimento e cada morte, morríamos e renascíamos, e cada vagido do recém nascido era o grito da revolta formulando-se à meia voz.

Lá estava SARAMAGO, intacto, inteiro, com os camponeses, como não o queriam. Pois os poderosos temem a influência decisiva da palavra vigorosa, do protesto enérgico, da revolta, do candente verbo de indignação que ateia fogo nas consciências adormecidas, sob a influência ancestral e o peso hercúleo do passado.

Quarenta atores, protagonistas, “levantados e principais”, alí, tornados camponeses, plantados feito guerrilheiros, feitos de sonho e pólvora, contadores de histórias, “amadores”, amando as dores das “custosas vidas dos pobres”, como se suas fossem. Pois amar os seres humanos é amá-los onde a injustiça sangra, em seus pontos mais feios, solitários, tristes, puros, sublimes, inteiros...

E ao fim e ao cabo, levo para casa o coração e as mãos cheios de flores, flores Faustinas, flores Marias Adelaides, flores Clemilsons, flores Clarisses, Flores Marineides... As sementes da libertação a serem semeadas nas primaveras do mundo.

Semeemos!


Miguel Jorge Martins da Silva

LEVANTANDO DO CHÃO





Começou o espetáculo. Abririam-se as cortinas, se cortinas houvesse. Estamos, porém, cá fora e os personagens desfilam em nossa frente. Homens e mulheres, mulheres e homens, que nos contarão a história dos trabalhadores de lá, de outra época e de outro lugar, trabalhadores de um Portugal obscuro e senhorial, que labutaram até a estafa para o patrimônio e conforto dos donos de terra. Um lá que se funde ao cá. Entremos no teatro, fomos convidados. Sentemo-nos, a ação vai começar. Reparemos no cenário... O espaço cênico desprovido da extravagância inútil ou de desnecessidades estéticas. Reparemos na música... O suave acompanhamento ou a força propulsora, conforme a situação. Reparemos nos figurinos... A caracterização exata, ao mesmo tempo única e universal. Reparemos no texto... O respeito extremo ao tom e sabor lusitano, ao dom e labor de Saramago. Reparemos na iluminação, no coro das vozes, nos trabalhos de xilogravura que adornam e acrescentam, que conversam entre si e conversam conosco... Reparemos, sobretudo, nos atores... Atores, atuantes, autorais... Pessoas, personas, personagens... Sobretudo: trabalhadores, como aqueles a quem representam. Trabalhadores que lutaram por uma jornada mais justa, trabalhadores que lutaram por um pagamento mais justo. Comendo vem a vontade, falando se aprende a falar, ouvindo se aprende a narrar. Trabalhadores, narradores. Trabalhadores, camaradas. Trabalhadores que lutaram por terra. Refrão inesgotável: Terra! Terra! Terra!... Os estandartes nos levam e acompanhamos a saga dos Mau-Tempo: Domingos, Sara da Conceição, João, Faustina, Antônio, Gracinda, Maria Adelaide. Viajamos por plagas alentejanas e por terras de nossa imaginação, viajamos por Monte Mor, Gadanha, Monte Lavre, Évora, Lisboa, Rio Branco, Xapuri, Alto Juruá... Sofremos com o chicote do feitor, sofremos com os tiros dos soldados, sofremos com as memórias de todas as chacinas do mundo. Mas o mundo não haveria de ser só chacinas... Repartimos os amores naturais e imortais dos seres humanos, de homens e mulheres, pais e filhos, mães e filhas, irmãos e camaradas. Repartimos o pão e o chouriço. Repartimos a vitória do basta, de um basta que passa de boca em boca, que cresce e se torna uníssono: Basta! E, ao final, os cravos, vermelhos. E o governo deitado abaixo. E a revolução. Em tudo, em cada parte e no todo, reverberaram as palavras de José Saramago: “Levantado do Chão fala de trabalhadores. Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação”. A peça acabou. Levantemo-nos todos!

Cesar Augusto de Oliveira Casella

UM CONVITE À REFLEXÃO E À EMOÇÃO: “LEVANTADO DO CHÃO”








A peça “Levantado do chão”, baseada no texto homônimo de José Saramago, emociona não só pela indiscutível beleza e cuidado de sua produção, mas sobretudo pelos temas que apresenta. Ao dramatizar a saga de quatro gerações da família Mau Tempo em Portugal, figuram temáticas como a exploração do trabalho dos camponeses, as demonstrações de insatisfação desta classe para com os seus senhores, a identificação das revoltas daqueles com o comunismo, o papel da Igreja Católica na justificação do caráter “natural” da exploração do homem pelo homem, a histeria do discurso anticomunista produzido pelos setores interessados na manutenção desta exploração. E tudo isso em pouco mais de uma hora e quarenta minutos de espetáculo!

Especial reconhecimento deve ser feito à escolha do texto de Saramago e a forma como ele foi apresentado. Em uma época na qual impera uma ideologia de que não existe alternativa ao atual sistema, eleger o texto do prêmio Nobel de língua portuguesa é um dos grandes méritos do espetáculo. Além disso, a maneira como os produtores encenaram alguns diálogos traz à tona elementos de um discurso bastante enraizado no senso comum. “Acaso não sabem que o mundo é assim por um desígnio de Deus?”, declara em certo momento da peça uma de suas atrizes. “Eu, que sou o seu benfeitor, aquele que lhes oferece o trabalho, é contra mim que protestam?”, brada um dos atores que representa o papel de dono do latifúndio. Nada poderia ser mais explícito na crítica dos argumentos ideológicos de sustentação da expoliação do trabalho alheio do que estas frases. Assim dramatizados, tais diálogos revelam, por um lado, o poder da ideologia da naturalização das relações sociais hoje existentes e, de outro, que a validade deste discurso, apesar de suas aparências, não resiste a uma crítica mais aprofundada.

Destaque também para a apresentação de um elemento da história de Portugal pouco discutido mesmo pelos especialistas neste assunto. Resgata-se o papel dos camponeses na luta pela derrubada da ditadura filo-fascista de Salazar, que perdurou no poder por quase cinqüenta anos (1926-1974). Freqüentemente é dada ênfase à articulação de militares de médio e baixo escalões no combate ao regime salazarista, abordagem que acaba por deixar à margem da história os enfrentamentos radicais entre grandes proprietários de terras e camponeses. Não cabe lugar a dúvidas que os seguidos motins militares agiam sob a base de um movimento civil mais amplo, e parte deste é retratado em meio ao cotidiano dos Mau Tempo, família que representa as derrotas e vitórias dos camponeses antes e durante o salazarismo.

Apesar de ser dramatizado com base na história de uma família portuguesa, é inegável a analogia que o texto de Saramago faz à realidades próximas e distantes das terras lusitanas. Se os portugueses – ou o gênero humano – ainda não conseguiram realizar o sonho de uma “terra da fraternidade”, como expressa a canção “Grândola, Vila Morena”, lindamente interpretada pelo coral da peça, é porque a tarefa de superação da exploração do homem pelo homem ainda será longa e árdua. “Levantado do chão” é um convite à reflexão sobre esta penosa história da miséria humana. E é também um convite a se emocionar pela forma como foi dramatizada, deixando ao final uma mensagem otimista de que há alternativas a esta realidade. O sofrimento dos muitos Mau Tempo que por aí existem não poderá ter sido à toa.


Vicente Gil da Silva

SOBRE ELES AINDA MUITO SE OUVIRÁ!








A música é uma arte que adora contar histórias. Ela faz o tempo parar, enleva, açoita, arrepia, enamora, desafia, vela, lamenta, suspira, encoraja e festeja. É a chave-mestra do coração, capaz de libertar risos e lágrimas.

Nas canções deste espetáculo as letras foram colhidas diretamente das páginas do romance de Saramago - verdadeiras vinhas de poesia e sabedoria. A partitura passeia pelo Alentejo, mas também pelas terras do Acre e de todo o Brasil. E se o mundo muda bastante em suas muitas regiões, o homem não varia tanto assim. Ao contrário, somos todos tão iguais em nossos sofrimentos, amores e esperanças que é até de se espantar.

Depois de dois anos de intenso trabalho, buscando através da troca de experiências e de conhecimentos melhor compreender a Arte, a primeira turma de alunos da Usina chega ao fim deste curso com muito para contar. E dentre tantas lições talvez a mais importante tenha sido perceber que a Arte e a Vida fazem mais sentido quando compartilhadas.

Assim nasceu o nosso Levantado do Chão, um espetáculo que reúne todos os alunos e a equipe da Usina a realizar uma obra que é a síntese de nosso projeto de ensino artístico: o encontro criativo e colaborativo de pessoas, artes e sonhos.

Mas atenção, pois a história destes jovens artistas acreanos que ora se levantam está só começando e sobre eles ainda muito se ouvirá!

Roberto Bürgel